QUANDO OS ABORTOS –– que por definição ocorrem até a vigésima semana de gestação – se repetem em mais de uma gestação, o médico pode suspeitar da quilo que se chama de aborto de repetição. O critério aceito é de que a mulher que sofreu dois abortos recorrentes, sem ter tido uma gravidez de sucesso entre eles, sofre de aborto de repetição. Tal situação corresponde a cerca de 0,5% a 1% das mulheres. Em última análise, o aborto de repetição não é uma causa da infertilidade. Na prática, no entanto, é uma forma de manifestação da doença, na medida em que impede o casal de ter filhos.
A possibilidade de novos abortos e progressiva para quem apresenta um quadro de aborto repetitivo. Após a primeira perda, a mulher tem 11% de riscos de sofrer uma segunda perda. Se houver outra, as chances para a terceira são de 16%. As possibilidades aumentam depois para 25% para a ocorrência do quarto abortamento, 45% para o quinto e 54% para o sexto. Para mulheres acima de 35 anos o risco aumenta em 10%. Este aumento progressivo da possibilidade de aborto é uma das razões pelas quais o aborto de repetição não deve ser menosprezado, mas, pelo contrário, deve ser estu dado de perto. Este capitulo dedica–se a analisar o aborto de repetição, explicando suas causas e apresentando os tratamentos que a medicina oferece para este complexo problema.
O diagnóstico do aborto de repetição
A avaliação das mulheres em situação de abortamento repetitivo inclui diversos exames para detectar as causas. Fazem–se testes hormonais, genéticos, histerossalpingografia, biópsia de endométrio, exames infecciosos, reações imunológicos e culturas das mais diversas para se verificar se há alguma infecção.
Quando não há confirmação médica e a suposta perda ocorreu pela primeira vez e no primeiro trimestre, as chances dessa mulher ter realmente passado por uma gravidez seguida de abortamento são baixas (de 15% a 20%). É por isso que geralmente não há um exame rigoroso das condições dessa primeira perda. Como as chances de o evento se repetir uma segunda vez variam em torno de 11%, não é rotina e não há indicação médica para que se faça uma investigação mais complexa.
Há, no entanto, casos especiais, como certas pacientes que se sentem tomadas por uma dor psíquica de tamanha intensidade que a possibilidade de passar por nova perda é inadmissível. Nesse casos, não é a indicação médica, mas o sofrimento da paciente que determina a necessidade dessa avaliação mais detalhada.
As causas do aborto de repetição
Com todos os exames médicos e laboratoriais propostos, a medicina consegue fornecer pistas para identificar e tratar aproximadamente 50% dos casos de aborto de repetição. O motivo mais frequente têm raízes na genética, pois a maioria dos casos pode ser atribuída à má evolução do acoplamento genético, ou seja do acasalamento dos 23 cromossomos do espermatozoide com os 23 cromossomos do óvulo que permitirá o surgimento do embrião. Normalmente essa dificuldade está relacionada à diminuição ou aumento da quantidade de cromossomos no embrião. Um exemplo de desordem associada aos cromossomos é a triploidia, que ocorre quando dois espermatozoides penetram o óvulo, somando 69 cromossomos em lugar dos 46 regulares, criando desse modo situ ações incompatíveis com a vida segundo os códigos do organismo.”
O rastreamento de doenças endocrinológicas no organismo da mulher que apresenta abortos recorrentes também pode ajudar a explicar algumas dessas perdas sucessivas. A presença de diabetes ou crises de hipoglicemia no inicio da gestação também pode desencadear processos que levam ao abortamento. Por isso, nutricionistas, clínicos gerais, endocrinologistas, ginecologistas e esterileutas aconselham as mulheres com essas disfunções a engravidar apenas se os níveis de glicemia estiverem controlados e sob monitoramento do especialista.
A investigação de todas as possibilidades aumenta as chances de um diagnóstico mais preciso. A descoberta de que problemas genéticos e diabetes podem estar associados aos casos de abortamento habitual veio retirar a carga de responsabilidade atribuída durante muitos anos aos distúrbios da glândula tireoide, classificada anteriormente como a principal agente dessas perdas sucessivas. Consequentemente, ministravam-se doses de hormônios tireoidianos para tentar controlar o problema. Com os avanços da medicina, verificou–se que ha diversas outras causas, levando à diversificação dos tratamentos e maiores chances de sucesso.”
Entre as outras causas do abortamento habitual que foram descobertas ao longo do desenvolvimento da medicina estão as doenças autoimunes, como o lupus. Além disso, compõem o rol de possibilidades os problemas congênitos cardíacos, pois estes podem prejudicar a capacidade de oxigenação da gestante e do feto. Alguns casos de insuficiência do corpo lúteo também podem se desdobrar em abortamento habitual.”
Algumas pacientes ainda apresentam anticorpos antifosfolipides altera dos, o que significa que ainda poderão manifestar alguma doença imunológica ou reumatológica e que o primeiro sintoma é o aborto de repetição. Esta síndrome é conhecida como Sindrome Antifosfolipides
Certas infeções bacterianas também têm capacidade de levar ao aborta mento no inicio da gestação, a exemplo dos microrganismos mycoplasma e ureaplasma urealytico, entre outros.96 mesmo não se pode dizer sobre a maio ria das doenças virais (como a rubéola, herpes e citomegalovirus), que, embora exerçam papel importante nos casos de abortamento durante o período inicial da gravidez e até em casos de má–formação congénita, não são fatores diretamente responsáveis pelos casos de perdas repetidas. Da mesma forma, dificuldades relacionadas com o fator Rh nada têm a ver com os casos de abortamento habitual
Cerca de 10% a 20% dos casos de abortos de repetição são devidos a problemas anatômicos, ou seja, malformações do útero. Quando os aborta mentos ocorrem no segundo trimestre, são essas as causas que prevalecem. Do grupo de mulheres com problemas anatómicos, fazem parte aquelas com alterações obtidas após curetagens ou outros procedimentos cirúrgicos no útero.
Nessas situações, diminui muito a cavidade uterina, o que atrapalha a permanência do leto e pode culminar com a sua expulsão.”
Por fim, a incompetência istmo cervical é outra causa anatômica do aborto repetitivo. Situado no final do colo do útero, o istmo é uma musculatura que funciona como uma válvula. Quando perde o tônus, o istmo se abre à medida que o bebê vai ganhando peso. O histórico das perdas dessas mulheres acometidas pela incompetência istmo cervical geralmente aponta um episódio de abortamento aos cinco meses de gestação, depois outro aos quatro meses, por exemplo, revelando que a cada dilatação o colo fica mais flácido, situação observada com clareza em radiografias. A correção é efetuada por meio de uma cirurgia chamada ciclagem: o médico da pontos cirúrgicos para diminuir o diâmetro do colo do útero, impedindo que continue se dilatando ainda mais.
Outro suspeito de reduzir a área reservada ao bebê é o mioma. Entretanto, esta é uma hipótese que precisa ser muito bem avaliada, pois a existência desses tumores benignos no revestimento interno ou externo do útero, por si So, não os torna causadores do abortamento repetitivo. E há casos em que atribuir de imediato o distúrbio aos miomas acaba omitindo as verdadeiras causas. Normalmente, suspeita–se desse tipo de problema quando a perda ocorre após doze semanas de gestação. As outras causas – genética, imunológica ou endócrina – em geral causam perdas em fases anteriores á 12 semana. Isso ocorre porque, no primeiro trimestre, o crescimento do embrião é muito lento. Ele está em fase de formação. No segundo trimestre, estará crescendo e no terceiro trimestre irá engordar. Um bebê nascido com seis meses de vida intrauterina tem um bom tamanho, mas é bastante magro.‘s
Além dos riscos mencionados, existem comportamentos que aumentam as chances de perda repetida. Talvez o mais grave deles seja o consumo constante ou periódico de substâncias reconhecidamente tóxicas ao organismo, legalizadas ou não. A cocaina, por exemplo, têm lugar destacado entre esses agentes desestabilizastes da gestação tranquila não apenas pelos efeitos tóxicos, mas também por seu efeito vasoconstritor, o que atrapalha a circulação sanguínea.” Acima de duas doses por dia, as bebidas alcoólicas também passam a duplicar as chances de abortamento habitual. Evidentemente, o cigarro pertence a esta seleção de substâncias nocivas. Fumar mais do que dez cigarros por dia eleva as chances globais de abortar em 1.7 vezes
O tratamento do aborto de repetição
Devido à grande variedade de causas do aborto repetitivo, há inúmeras formas de se tratar o problema e o diagnóstico ganha uma importância ainda maior do que normalmente já tem. Aliás, um diagnóstico correto das causas do aborto repetitivo permite muitas um tratamento especifico, eliminando a necessidade de se manter alguma espécie de terapia durante a gravidez.
Nos casos de má formação congênita uterina, sinéquias ou miomas, o trata mento cirúrgico é realizado, visando aumentar o tamanho da cavidade uterina
Os hormônios também devem ser usados se houver diagnóstico confirmado de doenças endocrinas tais como hipotiroidismo, diabetes, insuficiência do corpo lúteo. Nos casos de hipotiroidismo, o uso de tiroxina é necessário para a compensação do quadro metabolico, enquanto ajustar a dose de insulina em pacientes diabéticas é fundamental para o bom desenvolvimento do embrião e para a amamentação da gestação. Já nos casos de insuficiência luteal, a reposição hormonal com progesterona administrada tanto na forma oleosa intramuscular como na forma de supositórios vaginais é de extrema valia.
Uma das alternativas diminuir as chances de abortamento repetitivo na Sindrome Antifosfolipide, associada a reações autoimunes, é o uso de anti coagulantes. Este medicamento tem a capacidade de diminuir a trombose placentária,
Um tratamento curioso para tentar prevenir o abortamento habitual é utilizado nos casos em que as investigações clinicas e laboratoriais não identificam nenhuma causa para o problema. Trata–se de uma espécie de vacina antiabortamento, preparada com os linfócitos (glóbulos brancos) do marido. Eles são injetados, aos poucos, no organismo da mulher para que o sistema imunológico passe a entender que essas substâncias, no caso proteínas, fazem parte daquele corpo. Desse modo, o sistema imunológico não liberaria uma série de anticorpos para destruir o embrião, pois metade do embrião provém do marido. Teoricamente, a ideia é inteligente: se metade do embrião é do ma rido, porque não agregar as proteínas do parceiro ao repertorio admitido pelo corpo da mulher? Entretanto, após sinais de uma década de uso, os estudos populacionais não evidenciaram diferenças importantes entre as mulheres vacinadas e as não vacinadas na prevenção do aborto de repetição.
O aborto precoce
Em geral, os abortamentos acontecem no primeiro trimestre. Algumas mulheres inclusive nem percebem que são abortadoras habituais porque seus abortos acontecem tão rapidamente que o ciclo menstrual quase não se modifica. E o chamado aborto precoce, que nem sempre está relacionado a um quadro de aborto de repetição. Ou seja, ele também pode ocorrer esporadicamente.
Existem trabalhos mostrando que até 60% das mulheres expostas as chances de gravidez podem abortar no primeiro mês. Uma pesquisa americana no final dos anos 80 acompanhou mulheres voluntárias em idade fértil e com relações sexuais frequentes. Toda vez que menstruavam, o especialista analisava uma amostra do sangue para saber se havia ocorrido algum tipo de alteração gravídica durante aquele ciclo. Chegou a um índice de 35% de gravidez com aborto.
Entre as causas do aborto precoce está a endometriose, que causa a insuficiência do corpo lúteo e, em alguns casos, interfere na atividade do folículo após a expulsão do óvulo. Na realidade, o que ocorre nesses casos é que o corpo lúteo não se sustenta para produzir a progesterona na quantidade e pelo tempo necessários para luteinizar o útero e manter o embrião. As mulheres com essa deficiência engravidam normalmente, mas abortam tão depressa que nem se dão conta de que engravidaram. Um sintoma que também acaba passando despercebido é o adiantamento ou atraso da menstruação em um ou dois dias. Na verdade, pode não ser menstruação, mas um aborto precoce.