Óvulos para mais tarde. Preservando a fertilidade 

DURANTE MUITO TEMPO a medicina lentou operar um milagre que parecia impossível: congelar óvulos para uma inseminação futura, sem que o próprio congelamento destruísse as células delicadas. Como é natural quando a temperatura baixa demais, os líquidos se solidificam e o volume se expande. É o bastante para que a microscópica quantidade de água dentro do óvulo forme cristais que cortam como lâminas afiadas as membranas e estruturas das células, destruindoas

Pensando em medidas ínfimas, um óvulo tem dentro de si bem mais água que um espermatozoide, e por isso as células femininas nunca puderam ser utilizadas para a criogenia, que é a conservação por meio de congelamento e imersão em nitrogênio liquido. É uma técnica empregada com sucesso para congelamento de sêmen, e também para preservar embriões formados, por terem os tecidos mais elásticos. Mas com os óvulos, não era possível. E isso desafiava cientistas

A busca de resposta, se era importante para a medicina, para ampliar ao longo do tempo as possibilidades de fertilização após a coleta dos óvulos, para as mulheres de modo geral seria uma mudança revolucionária. Não viria beneficiar apenas as que enfrentam transtornos precoces à sua capacidade reprodutiva, em razão de doenças, mas também aquelas com desejo de planejar a maternidade para mais tarde

Fazendo um paralelo com a maior conquista em medicina reprodutiva, do ponto de vista do impacto positivo sobre a emancipação feminina, a invenção da pílula anticoncepcional permitiu que as mulheres usufruíssem por mais tempo a vida sexual sem risco de engravidar, postergando até casamentos muitas vezes determinados por gravidez indesejada. Mas ainda assim continuaram sob pressão do relógio biológico. Se não engravidam até certa idade, os estoques de óvulos aos poucos se esgotam e uma gravidez pode tornarse inviável. A possibilidade de preservar óvulos férteis veio ampliar esse poder de decisão sobre o momento de ser mãe 

Em 2008, a medicina venceu o desafio 

Se a água congelada dentro da célula era o grande adversário da sua conservação, o desenvolvimento de uma técnica para desidratar o óvulo e proteger suas estruturas foi o passo decisivo que permitiu, em 2008, o sucesso do procedimento chamado vitrificação do óvulo. Antes do congelamento, os óvulos são banhados por um liquido crioprotetor, que produz justamente esse efeito: desidrata a célula e forma um invólucro em torno dela, como a parte firme de um drops recheado. O óvulo no interior preserva as mesmas condições do momento da coleta e não sofre lesões no procedimento que vem a seguir: é rapidamente congelado a 196 °C, sem tempo para formação de cristais, e imerso em nitrogênio liquido. Assim será mantido até o momento em que a mulher se sinta preparada para ser mãe

Para muitas mulheres, a alternativa da vitrificação faz a diferença entre preservar ou perder para sempre a capacidade reprodutiva. Pouca coisa era mais triste em reprodução assistida que uma mulher jovem, com óvulos saudáveis e desejo de ser mãe, diante da noticia de que alguma doença inesperada seria tratada com terapias químicas ou radiativas que poderiam destruílos. Ao poupar seus óvulos antes da medicação agressiva, ela pode contornar essa fase penosa como qualquer outra que queria preservar a fertilidade 

Embora seja um procedimento laboratorial sofisticado, não diferença para uma mulher disposta a congelar óvulos para o futuro entre o processo de preparação a que seria submetida em um caso de FIV ou ICSI: primeiro a indução da ovulação, com administração de hormônios, depois a retirada dos óvulos por aspiração. Os óvulos vitrificados poderão ser utilizados para ampliar as chances de uma fertilização ter sucesso não inseminando todos os óvulos de uma vez, ou mesmo no caso daqueles mulheres que querem doar células reprodutivas para outras, anônimas, que dependam deste gesto para engravidar. Ou podem ser mantidos por anos enquanto a futura mãe organiza sua vida para a maternidade. Colhidos de pacientes com até 35 anos de idade, a taxa de sobrevida dos óvulos vitrificados é de mais de 95%, conservando as mesmas características do óvulo jovem. Uma vez inseminados para fertilização, a taxa de gravidez e de aproximadamente 65%, maior portanto que as estatísticas para a gravidez obtida por métodos exclusivamente naturais.

DIÁRIO DE UM ESTERILEUTA 

A escolha da vitrificação para driblar o relógio biológico 

Karina me procurou com um pedido que passa pela cabeça de muitas mulheres quando chegam sem parceiros perto dos 35 anos e querer ser mães: estava interessada na produção independente, disposta a recorrer a um banco de sêmen e encarar a vida de mãe solteira. Mas ela não estava feliz com a própria escolha. Não se tratava de um projeto de vida, mas a tentativa de salvar o plano da maternidade de um casamento que acabava de naufragar. Ouvi sua história. 

Apaixonada pelo mundo da moda e talentosa como cabeleireira, Kari na se casou quando ainda fazia cursos para dominar todas técnicas da profissão. Estava com 26 anos e correndo atrás de uma formação que lhe ajudasse a concretizar o projeto de montar e gerenciar um salão de beleza completo. O marido também ainda estava construindo sua carreira na área de administração de imóveis e acharam que deveriam buscar primeiro a estabilidade profissional para depois aumentarem a família. E tudo foi dando certo para os dois. 

De cabeleireira, Karina se tornou empresária. E o marido um corretor bem sucedido. Bem instalados, com renda satisfatória, e já com 34 anos, foi quando Karina começou a falar em melhorar a casa para a vinda de uma criança que veio a surpresa. Com receio de que ela levasse os sonhos adiante, o marido resolveu abrir o jogo e contar de um outro envolvimento amoroso. O casamento não resistiu. 

Entendi que Karina não estava suportando a idéia da perda dupla: o companheiro e a maternidade e decidira tentar evitar uma delas. Mas como uma mulher que havia se planejado tanto para uma família estruturada, era evidente que seu sonho de maternidade incluía a figura de um pai presente e capaz de dividir com ela essa nova etapa de vida. 

Jovem e levando uma vida saudável, Karina era o tipo de paciente que poderia esperar um pouco mais pela gravidez. Mas seus ovários não dispunham de muito mais tempo. Mesmo assim, foram muito importantes as conversas no consultório para que ela pudesse refletir sobre a escolha que estava fazendo, ao mesmo tempo impetuosa e consciente do relógio biológico. 

A solução para essa jovem surgiu quando ela disse que gostaria de poder parar o tempo, apenas para poder reconstruir sua vida e voltar a pensar nisso quando estivesse pronta emocionalmente, com ou sem o parceiro dos seus sonhos. E foi assim que a alternativa da vitrificação de óvulos apareceu em seu socorro. 

Karina tomou medicamentos para induzir a ovulação e, no momento certo, teve doze óvulos coletados e congelados. Eles estão guardados, a espera dela, que está de novo organizando a vida para ser mãe. 

DIÁRIO DE UM ESTERILEUTA 

Solidariedade anônima na ovodoação 

Leonor e João Paulo sempre acreditaram que os filhos viriam por métodos naturais, ambos filhos de famílias numerosas e com certa compaixão por casais sem filhos. Chegavam a falar um ou outro da sensação que tinham de que essas pessoas não eram felizes por completo. Para eles, ser mãe e pai era a decorrência natural do casamento. Mas quando perceberam que estavam no quarto ano de casados, mais quase dois de namorocom vida sexual ativa e regular, sem uso de preservativos e nem sinal de bebé, sentiram medo pela gravidez estar demorando tanto. Ela procurou um serviço público em sua cidade e se dispôs a fazer todos exames. E apesar da resistência inicial de João Paulo, o serviço médico exigiu que ele iniciasse os exames também

João Paulo fez e repetiu o exame, tomou remédios, fez novamente. Não restou dúvida. Embora Leonor, aos 25 anos, tivesse um ciclo bem re guiado, saúde reprodutiva e boa ovulação, a baixa quantidade de espermatozoides do marido estava reduzindo muito as chances de fecundação por meios naturais. Ainda relutantes me procuraram e acabaram entusiasmados ao saber que a medicina poderia ajudar através de uma FIV

Para esse jovem casal de comerciários, arcar com os custos mínimos do procedimento exigiria economias aos quais estavam dispostos, como vender seu único meio de transporte, mas mesmo assim precisaria de um tempo de sacrifícios e espera. Mas quando vieram para remarcar uma consulta para bem depois do que gostariam, Leonor me disse algo que acabou mudando essa história

Ela me contou que quando percebeu o risco de nunca terem filhos, pensou em outras pessoas que passam pela mesma situação. E se na sua ovulação induzida produzisse mais óvulos do que precisaria para engravidar, gostaria de doálos a mulheres que estivessem em alguma fila de espera

Na hora, me lembrei de Deborah e Pedro Henrique, um casal que aguardava ansiosamente por uma noticia dessas e que insistia em arcar com todo procedimento de indução, coleta e congelamento das células a serem doadasincluída a FIV para a doadora anónima

Eu não poderia, pela ética da Reprodução Assistida, aproximar esses Casais. Deborah e Pedro Henrique tiveram sua FIV por meio de ovodoação. Leonor e João Paulo tiveram sua FIV antecipada. Eles jamais se conheceram. Mas estiveram mais perto do que imaginam, pelos laços da solidariedade que unem famílias a espera de um bebé

óvulos de uma vez, ou mesmo no caso daqueles mulheres que querem doar células reprodutivas para outras, anônimas, que dependam deste gesto para engravidar. Ou podem ser mantidos por anos enquanto a futura mãe organiza sua vida para a maternidade. Colhidos de pacientes com até 35 anos de idade, a taxa de sobrevida dos óvulos vitrificados é de mais de 95%, conservando as mesmas características do óvulo jovem. Uma vez inseminados para fertilização, a taxa de gravidez e de aproximadamente 65%, maior portanto que as estatísticas para a gravidez obtida por métodos exclusivamente naturais.