A INFERTILIDADE SURPREENDE MUITAS PESSOAS Como a primeira grande crise da vida adulta. Geralmente, elas ainda não sofreram perdas de pessoas muito queridas, como o pai ou a mãe, e não enfrentaram outros problemas graves de saúde. No entanto, ainda que alguma dessas situações tenha ocorrido, é grande a possibilidade de a descoberta da infertilidade ser a primeira grande crise da relação a dois.15 

A ideia de casamento é impregnada de valores culturais que geralmente presumem uma relação apoiada no amor, no sexo e, para uma grande maioria, no projeto de procriação. E aqui que surgem algumas perguntas importantes. Se qualquer uma dessas perspectivas se desfaz, até que ponto os outros laços se mostram suficientemente fortes para manter os parceiros juntos? E quanto ao projeto familiar? Se não vierem os filhos desejados, para onde o casamento deve rumar?10 

Lidar com a infertilidade exige de muitos a coragem para remexer em valores arraigados e até para redescobrir os verdadeiros laços que sustentam o casamento. Tudo isso gera sentimentos que se confundem e podem, a princípio, tornar a descoberta da infertilidade mais assustadora do que deveria. No entanto, esse impacto inicial é uma etapa vencida por muitos casais antes de se reabastecerem de ânimo e energia para superar a crise. Afinal, muitas etapas na jornada em busca ca lertilidade

Poucos estão preparados para a infertilidade 

Um primeiro aspecto a ser considerado é que, durante a sua formação, o indivíduo não é preparado para lidar com a infertilidade

DIÁRIO DE UM ESTERILEUTA 2

Tenho medo e me sinto só 

Foi preciso marcar uma consulta separada para que Silvia ficasse à vontade para falar de suas suspeitas sobre sua dificuldade de engravidar Afinal um ano e meio de tentativas frustradas havia passado. Ela tomou a iniciativa de me telefonar, após sua primeira visita ao consultório junto com Marcos. Pedia agora um atendimento individual. Estava convencida de que alguma coisa havia ocorrido de errado com seu corpo durante um namoro anterior. Talvez uma infecção por alguma doença sexualmente transmissível, uma DST, suspeitava

Achei curioso, ao ouvi-la, que estivesse precisando de um momento a sós para falar de um assunto que não era nenhum segredo no casamento. Marcos sabia dos namoros anteriores da companheira e viceversa, e ambos pareceram bastante solidários e abertos na exposição de suas dúvidas na primeira consulta. Também pareceram muito seguros ao descartar qualquer histórico de doenças sexualmente transmissíveis (DST) ou infecções 

Tenho sentido muito medo de ser a causadora de uma frustração tão grande em nosso casamento e não estou conseguindo falar sobre isso em Casa. Marcos vive fugindo do assunto. Lembra sempre que não somos pessoas promíscuas, o que me deixa constrangida de aventar a possibilidade de ter tido alguma doença contagiosasem saber. Realmente não sei quais são os sintomas de uma DST. O que sei é que fui poucas vezes ao ginecologista quando era mais jovem. Quero saber se o problema é meu e o que posso fazer a respeito, disse Silvia, admitindo todo o temor de ser responsabilizada pelo companheiro

Expliquei a Silvia que a radiografia na realidade, uma histerossalpingografiaque estava marcada apontaria qualquer obstrução que, por ventura, tivesse resultado de uma infecção. Ela perguntou se poderia estar sozinha no momento de conhecer o resultado. Sua aflição, que mais tarde se revelaria sem fundamento, era tão grande que um casamento até en tão sólido e tranquilo estava começando a entrar em crise. Estou me sentindo sozinha, sempre deixando para depois conversas sobre nosso futuro e nossos planos para a casa. E como se nossa vida estivesse em suspenso. Enquanto isso, faço de conta que está tudo bem.” 

A reprodução é tratada como um evento presumido para a idade adulta. Os jovens são alertados sobre a necessidade de evitar uma gravidez indesejada. Na escola, aprendem como funcionam seus corpos na reprodução, descobrem até que podem adiar ou descartar o projeto de ter filhos. No entanto, não sio preparados para a possibilidade de serem inférteis ou de lidar com a infertilidade do parceiro escolhido

É natural que o aprendizado intensivo iniciado quando o problema aparece implique em períodos de estresse, angústia e depressão. Culpa e solidão também são emoções muito presentes nessa situação

Por que comigo? Por que com a gente? O que fiz de errado para merecer esse castigo? Perguntas como essas, que algumas pessoas acabam fazendo a si mesmas, têm também uma conotação de crise espiritual. Não resposta para essas questões e não se pode buscálas a não ser projetandolas em um plano metafísico, com colocações como esta: Deus está me privando de uma coisa tão natural por algum motivo. Ou ainda, com a tentativa de materializar o sentimento de culpa por meio de qualquer fato ocorrido 

Se hoje sou infértil, com certeza foi por causa daquele aborto. Ou daquele namoro. Ou daquele DIU

Homens e mulheres se portam de maneira diferente ao encarar a infertilidade. A mulher geralmente sofre muito, atribuindose uma responsabilidade que não lhe cabe individualmente. O homem é quem mais se esconde, ora negando o problema, ora negando sua gravidade. É impressionante o número de homens que, durante o tratamento, procuram mostrarse absolutamente seguros de que tudo vai dar certo, como se dessa forma não precisassem lidar com a angústia da companheira além da sua própria. No entanto, é importante que o casal trate em sua vida conjugal todo esse sentimento mal resolvido. É preciso tempo para assimilar uma situação nova

É razoável que a mulher se sinta ao ver a primeira grande crise de sua vida reduzida, na boca do parceiro, a algo do tipo: Tente relaxar. Não é tão grave assim. A válvula de escape da maioria de homens e afundarse no trabalho para neutralizar a própria ansiedade. as mulheres, que enfrentam o problema mais de frente, se vêem obrigadas a administrar as emoções que interferem no seu diaadia profissional. Mais do que nunca, ressentemse da ausência, da insensibilidade e da falta de solidariedade que atribuem ao parceiro. O homem, a sua maneira, também sofre. Mas as formas diferentes de lidar com a situação não raramente impõem mais uma dificuldade para o casal: um distanciamento que pode agravarse, mas que também pode ser revertido. O tempo e a qualidade da relação é que darão o desfecho para a crise

Compartilhar o problema nem sempre é fácil

Fertilidade, sexo, privacidade: é difícil separar estes conceitos culturalmente. Quando a fertilidade precisa de ajuda externa, a necessidade de compartilhar o problema repercute na vida de muitos casais como um risco de expor sua intimidade sexual além do que consideram tolerável

Individualmente, as pessoas aceitam com facilidade a busca de apoio médico para a solução de problemas de saúde sexual e se sentem mais seguras pelo fato de poder contar com um suporte profissional. É uma situação que tende a se reproduzir com o casal, quando o assunto é a fertilidade. No entanto, compartilhar o problema com amigos e parentes é uma história bem diferente. Até o momento de saber como e onde buscar ajuda, os parceiros passam por uma fase dolorosa de aceitação do problema em que muitas portas parecem difíceis de abrir. Falar sobre o assunto com terceiros pode ser uma dessas barreiras. É compreensível. Não é algo tão espontâneo quando quanto quei xarse, em uma roda de amigos, daquelas dores no peito que estão exigindo a consulta a um cardiologista. Surpreender os pais em um almoço de domingo com a confirmação de um diagnóstico de diabetes pode não ser tão difícil quanto revelar uma baixa contagem de espermatozoides

DIÁRIO DE UM ESTERILEUTA 3

Um intruso em nossa vida 

Jacira e Sérgio chegaram decididos a partir para uma fertilização in vitro (FIV). Disseram que fariam todos os procedimentos necessários para utilizar esse método, mas que dispensavam maior investigação do motivo pelo qual ela ainda não tinha engravidado

A princípio, me pareceram apenas encantados com a ideia de um bebê de proveta, exatamente como outros casais que se impressionam com a divulgação das modernas técnicas de apoio à reprodução. No entanto, logo perceberia que o caso deles era diferente. Assim que expus a necessidade de investigarmos as causas da infertilidade, antes de qualquer decisão sobre o caminho a seguir, Sérgio mostrouse irritado. Disse que não gostaria de ficar esmiuçando sua intimidade sexual, que tudo entre eles transcorria de forma normal e satisfatória, e que os dois não estavam dispostos a prolongar aquela angústia com uma investigação demorada

Não gosto da ideia de que, qualquer hora dessas, nossa vida particular acabe virando assunto na roda de amigos. Ela parecia prostrada demais para interferir no rumo da conversa. Ao final, foi ela quem tomou a decisão, mais conformada do que convencida: Se temos de fazer exames, vamos fazêlos

Não são poucas as pessoas que se sentem constrangidas em abordar problemas de saúde que remetem a questões sexuais. Desabafar, ouvir casos parecidos, buscar a melhor indicação de especialistas são atitudes que melhoram o ânimo de quem vislumbra um tratamento médico pela frente. No entanto, para muitos casais que suspeitam de infertilidade, socializar seu problema é uma possibilidade desconfortável, negada, adiada ou nunca dividida. O que poderia ser motivo de apoio e solidariedade naturais quando se trata de doenças transforma se em uma carga pesada para os parceiros carregareme o casamento sofre com isso

Nos consultórios de reprodução humana, as dificuldades dessa fase também se manifestam sob a forma de timidez, constrangimentos, ou mesmo irritação diante de um intrusoo médicoque vem especular sobre a intimidade do casal, às vezes abordando coisas tão profundas que jamais foram ditas a alguém. A sexualidade de cada um traz reminiscências de situações vividas na infância, na adolescência, muitas presentes no inconsciente, impondo certos limites que precisam ser respeitados. Para qualquer pessoa, resumir um ato sexual em palavras, como se isto pudesse ser objeto de uma avaliação de qualidade, é reduzir demais a aspectos fisiológicos e mecânicos algo que se vivencia como expressão de um desejo, da qual o raciocínio e a lógica ficam muito distantes. E, de repente, surge o médico, com sua autoridade científica, vascuIhando detalhes da vida íntima do casal. E, para agravar a situação, isso ocorre justamente em uma fase quando os parceiros experimentam insegurança, angústia e, as vezes, culpa e medo de cobranças. Não raro, certas coisas são relatadas por um dos cônjuges pela primeira vez na presença do médico, a ponto de surpreender o parceiro que nunca fora informado do assunto na intimidade do casal. Colocar dados pessoais sobre a mesa em nome da batalha por um bebé pode ser um momento importante, embora as vezes conflituoso, de aproximação e fortalecimento da relação a dois

Os que passam por essa crise inicial podem ter pelo menos o conforto de saber que não são os únicos. Muitos casais inférteis passaram por ela e sobreviveram. Melhor:: saíram fortalecidos!