NO CAPITULO ANTERIOR abordamos as causas não obstrutivas da infertilidade feminina. Neste capítulo, destacaremos as causas obstrutivas, ou seja, doenças e falhas que impedem a livre circulação dos gametas. A endometriose é uma das principais causas obstrutivas da infertilidade na mulher.
A endometriose
Mulheres com muitos filhos, como era bastante comum nas gerações passa das, têm um número menor de ciclos menstruais durante sua vida reprodutiva devido ao grande número de gestações. Isso, em boa medida, explica porque a endometriose é considerada uma doença da modernidade, já que está relacionada ao grande número de ciclos menstruais da mulher moderna. Além disso, ainda que nossas avós apresentassem a doença, sua eliminação era favorecida pelos hormônios da gravidez. Um banho de progesterona, decorrente da gestação ou amamentação, podia simplesmente secar eventuais focos iniciais de endometriose. 18
Com a emancipação feminina e o advento da pílula, os tempos mudaram. A liberdade de se relacionar sexualmente sem o risco de engravidar e a entrada da mulher no mercado de trabalho contribuíram para diminuir a quantidade de filhos. Hoje, a primeira gravidez pode ser postergada e uma segunda ou terceira podem até ser descartadas. Assim, as mulheres de hoje têm mais ciclos menstruais em sua vida reprodutiva e, também, mais chances de desenvolver uma endometriose. 19
DIÁRIO DE UM ESTERILEUTA 9
A doença da mulher moderna
A endometriose não era novidade na casa de Ana Paula. Sua irmã mais nova, Mariana, descobriu que a doença, em estágio inicial, já estava atrapalhando seu projeto de engravidar, mas resolveu o problema sem muito sofrimento. Tomou alguns remédios e fez uma inseminação: espermatozoides tratados em laboratório foram colocados diretamente dentro de seu útero e, naturalmente, fecundaram o óvulo. Um ano depois do nascimento do primeiro filho foi surpreendida com uma segunda gravidez: a endometriose havia desaparecido!
Ana Paula adiou a gravidez por mais tempo do que a irmã e, agora, que estava disposta a encarar a maternidade, via–se com dúvidas quanto a sua fertilidade. Chegou a tomar indutores de ovulação indicados por um ginecologista geral, mas não obteve sucesso. Quando soube, já em meu consultório, que tinha endometriose, não ficou muito assustada. Afinal, tinha sido tão simples com sua irmã! Mas quando pediu que eu mostrasse a imagem de seu útero no vídeo da laparoscopia, levou um choque, de verdade: “Doutor, isto é câncer?”
A endometriose se apresenta de várias formas, conforme seu estágio e, no caso de Ana Paula, já estava bem avançada. No entanto, não era um câncer, mas um verdadeiro impedimento para uma gravidez natural, que, felizmente, a medicina dispunha de recursos para superar. A solução seria fazer uma fertilização do óvulo em laboratório – uma fertilização in vitro (FIV)– e transferir o embrião para dentro da cavidade uterina.
Ana Paula ouviu toda a explicação que precisava, mas só acreditou no que os olhos viam. Insistia em falar de seu medo de algum tipo de doença incurável. Foi preciso dar um pouco mais de tempo para que percebesse a real dimensão de seu problema. Por mais avançado que estivesse, era um caso de aderências frouxas, como são chamadas a ligações que se fazem pela endometriose quando não chegam a impedir a elasticidade do útero, fundamental na gravidez.
Por três meses, Ana tomou análogos de GnRH para aumentar as chances de sucesso na primeira tentativa. Nesse período, procurou aliviar a ansiedade concentrando–se mais em seu trabalho de gerente de marketing em uma empresa e deixando um pouco de lado os programas esportivos e de lazer que gostava de organizar com Marcelo, seu marido, e as duas filhas quase adolescentes do primeiro casamento dele.
Marcelo via a infertilidade como um problema de Ana. Estava disposto a “The dar” um filho, mas sem o mesmo empenho porque, como sempre argumentava, já tinha a experiência da paternidade. Essa situação de desejos desiguais foi produzindo, para Ana, uma sensação de isolamento e abando no. Quando se deparou com a imagem de sua endometriose, teve medo de se ver, sozinha, com uma frustração “incurável” de nunca ser mãe.
Felizmente, Ana encontrou a cura para seu problema. Conseguiu sua gravidez com ajuda da FIV, viu sua endometriose diminuir um pouco sob ação dos hormônios da gestação e teve um bebé lindo e saudável, que roubou as atenções do pai.
“Hoje Marcelo é quem me agradece por ter sido persistente...“, Ana me confidenciou. A doença ainda está lá, já que é favorecida por disfunções imunológicas ainda desconhecidas, mas já não lhe parece tão assustadora. Depois de conhecer mais detalhes sobre seu problema, Ana costuma dizer com bom humor: “eu tenho uma doença de mulher moderna.” Em certa medida, é verdade.
A endometriose se desenvolve quando o organismo feminino não consegue reabsorver a chamada menstruação retrograda. O endométrio, tecido que reveste a parte interna do útero, descama naturalmente durante a menstruação, sendo eliminado na forma de sangue pelo canal vaginal. Muitas mulheres, no entanto, são portadoras de uma disfunção que faz partes desse tecido migrar pelas trompas e atingir a cavidade abdominal. Acredita–se que a causa desse desvio esteja relacionada com as pressões no interior do útero. Se a pressão aumenta no colo do útero e está menor nas trompas, o sangue com fragmentos de tecido endometrial tende a se redirecionado para as trompas, caindo na cavidade abdominal. Nos casos em que essas células do endométrio não forem reabsorvidas por ação do sistema imunológico, ocorre a formação de depósitos de células endometriais na região pélvica, em volta da bexiga ou ainda nas paredes que revestem o reto e em outras áreas do corpo. Dessa forma, a doença se instala.‘‘ Embora bastante raros, há casos registrados de pontos de endometriose na região do umbigo e até na gengiva.
Sensíveis à ação hormonal, esses tecidos endometriais fixados pelo corpo sofrem o mesmo processo de transformação da membrana que reveste o útero e que resulta na menstruação. Além disso, sempre que ocorre a menstruação, há novo sangramento no interior da barriga, e a doença evolui.
A endometriose não se encaixa entre as doenças endócrinas, fruto de desequilíbrios hormonais, já que se origina de uma disfunção imunológica. No entanto, para efeito de tratamento devem ser considerados os fatores hormonais. É uma doença curável, dependendo do grau de evolução e o sintoma mais frequente e cólica. Não há relação entre a intensidade da dor e o grau de desenvolvimento da doença, mas sim entre intensidade e localização. Mesmo em pequenas proporções, o implante externo do endométrio pode se aderir a terminações nervosas do utero, da bexiga, ou sobre o reto. As sensações dolo rosas vão de simples incômodos, quando a área de implante é de menor sensibilidade, a dores durante as relações sexuais. As vezes a dor é tanta que a pessoa tem dificuldade de sentar–se durante a menstruação. Como a doença evolui para un quadro de infertilidade, a dor tem ainda componentes psicológicos para a mulher que deseja engravidar, podendo ser potencializada por causa disso.”
A predisposição genética
Não é exclusivamente a vida feminina moderna que determina a endometriose. A doença só atinge mulheres com predisposição genética a desenvolvê–la. Irmãs de mulheres com endometriose têm estatisticamente até sete vezes mais chances de desenvolver a doença.”
Embora a menstruação retrógrada seja outro determinante para a endometriose, hoje acredita–se que ela aconteça com todas as mulheres. Essa probabilidade foi inferida a partir de observação do abdômen feminino durante cirurgias que coincidiram com o período menstrual. Um estudo feito com um grupo de mulheres que se submeteram a laqueadura durante a menstruação constatou–se que 90% apresentavam sangue menstrual na cavidade abdominal.+ No caso dessas mulheres, porém, o sistema imunológico em bom funcionamento impedia que os restos de endométrio se implantassem. Cerca de 50% das mulheres que se queixam de cólicas menstruais têm algum tipo de endometriose, e 30% a 40% das pacientes com indícios de esterilidade que fazem laparoscopia apresentam a doença,
A endometriose e a infertilidade
Nos estágios iniciais, quando ainda não há aderência entre os órgãos provoca da pela expansão do endométrio, a esterilidade já pode acontecer em razão das reações imunológicas do organismo. Existe um liquido secretado pelo peritonio (camada interna que reveste o abdome) e chamado de liquido peritoneal que, nos casos de endometriose, apresenta um aumento de glóbulos brancos que o organismo produz para tentar defender–se da doença. O resultado é uma esterilidade imunológica. Quando o espermatozoide chega ao útero, não consegue transitar normalmente, porque é barrado pelos glóbulos brancos.”
Também na fase inicial da doença, podem surgir focos microscópicos de tecido endometriótico dentro dos ovários, que sequer aparecem na laparosco pia. Não é nenhum tumor, mas as minúsculas substâncias conseguem prejudicar o processo de ovulação, provocando reações imunológicas que atrapalham a recepção dos hormônios que estimulam os ovários. O folículo que contém o óvulo cresce irregularmente e, mesmo que ocorra a ovulação, ela é seguida de insuficiência do corpo lúteo, que não produz a progesterona necessária para que o útero segure o embrião.26
Quando a endometriose evolui, as consequências são mais graves. É frequente a aderência das trompas aos ovários, o que desencadeia a degeneração dos tecidos. A primeira parte afetada são as fimbrias da trompa, que têm o papel crucial na reprodução humana de receber os óvulos e direciona-los a caminho do útero. Os ovários são danificados com o surgimento de focos sanguíneos – chamados cistos de chocolate — que podem aumentar à medida que a doença evolui. As aderências também são progressivas – ligando os ovários ao intestino, por exemplo – e acabam comprometendo a integridade anatômica dos órgãos reprodutivos femininos.28
Distúrbios que impedem a passagem do espermatozoide
A primeira barreira à passagem do esperinatozóides pelo corpo da mulher pode estar bem na entrada do útero, no chamado colo. Em situações saudáveis, a quantidade e a hidratação do muco cervical da região do colo começam a elevar-se quando se aproxima a ovulação. Em seguida, aumenta a viscosidade e o muco ganha a consistência de uma clara de ovo com 98% de água em sua composição. “No entanto, uma queda na presença do hormônio estradiol inibem a produção e todas as mudanças físico-químicas pelas quais o muco tem que passar até ganhar as características que permitam a passagem do espermatozoide. Quando a falta de qualidade do muco não é provocada por fatores hormonais, é bem provável que existam infecções precisando de tratamento.
Além de problemas na quantidade e na qualidade do muco, o espermatozoide pode ter sua passagem impedida por problemas do colo resultantes de doenças ou cirurgias, ou ainda por aderências, quando um tecido se cola a outro em uma reação provocada por processos infecciosos e cauterizações. !!!
Miomas
Pólipos ou miomas são tumores uterinos que, dependendo do tamanho e região onde se encontram, bloqueiam a passagem do espermatozoide após a travessia pelo muco cervicale, de forma ainda mais grave, impedem a manutenção do feto dentro do útero. O útero vazio pesa no máximo 150 gramas e mede aproximadamente 7 x 4x 3 cm. Por isso, os miomas o deformam por dentro ou por fora com facilidade, alterando seu tamanho. Os miomas são detectados através de exames radiológicos ou endoscópicos e podem ser retirados com relativa facilidade quando a mulher não está grávida.
Por ser hormônio–dependente, o mona é um tumor que se alimenta dos mesmos hormônios que a mãe produz em grandes quantidades para manter e desenvolver o bebê durante a gravidez. Ele pode crescer desordenadamente durante a gestação, não deixando espaço para o crescimento do bebê. Nesse caso, a gravidez acontece, desenvolve–se até um ponto, mas pode não conseguir avançar.
Geralmente, as complicações do mioma são ou um abortamento tardio, que acontece frequentemente após a 12 ou 13‘ semana de gestação, ou um parto prematuro: o tumor pressiona tanto o bebê que ela nasce antes da hora. A preocupação com um possível nascimento prematuro já começa no inicio do quarto mês, com 16 ou 17 semanas de gravidez, e se estende até a 322 ou 331 semana, pois a prematuridade pode trazer sérias complicações ao bebe.”
Para entendermos as particularidades do mioma, é importante que conheçamos um pouco da anatomia do útero. A parede uterina é formada por três camadas. A mais interna, que se transforma após a ovulação para acolher e sustentar o embrião, é o endométrio, A parte mediana é um músculo chama do miométrio. Na parte exterior, protegendo o órgão, está o perimétrio.
Uma tumoração na parede uterinia pode ficar inteiramente contida pelo miométrio, mas aumentar de volume deformando o órgão. Pode também projetar–se para o lado de fora ou para a cavidade interna. Miomas assim são chamados de pedunculares. Seu pedúnculo (ou raiz) está em uma das paredes, mas seu volume avança para um dos lados.
Características como estas são examinadas quando se decide que atitude tomar em relação ao mioma. Afinal, às vezes é possível tratá–lo clinicamente, enquanto outros casos exigem a remoção cirúrgica. Também pode–se optar em deixar o mioma como está, caso não ameace a continuidade de uma gravidez ou a saúde da mulher,
Além do tamanho e tipo de expansão, é importante observar se o tumor está muito próximo a uma das trompas. É um fator que pode obstruir o trânsito do espermatozoide ou mesmo contraindicar a remoção do tumor. E muito comum o aparecimento de aderências pós–operatórias em cirurgias para retirada de mioma. Quando ocorre algum tipo de aderência nas trompas, decorrente de cirurgia uterina, as chances que a mulher tem de engravidar diminuem em 50%.
Sinéquia
Diferente do mioma, a sinéquia é uma aderência que pode ser causada por infecções, geralmente após um aborto ou curetagem. As paredes uterinas se grudam em alguns pontos ou em uma grande área o diagnóstico é feito por radiografia. A sinéquia leve é aquela que compromete até 25% das paredes. Entre isto e pouco mais de 70% ela é considerada média. Acima desse pala mar, o caso é grave.
Mesmo com todos os procedimentos cirúrgicos que existem hoje, o endométrio na área em que houve a sinėquia pode não se recompor devidamente. Se a extensão comprometida for grande, maiores são as chances de um aborto no futuro ou um parto prematuro,
Obstruções e lesões na trompa
Infecções que aparecem dentro do útero, ou mesmo no colo uterino, podem desdobrar–se em fatores obstrutivos para a trompa. As infecções são sempre ascendentes. Uma vez dentro do útero, sua evolução é para o alto. Até um tubo usado em exames ou cirurgias, que tenha sido introduzido no útero e deixado que bactérias transitassem para seu interior, pode desencadear um histórico de trompa entupida.
As bactérias fazem todo tipo de estragos quando alcançam as trompas. São elas as causas mais frequentes de obstruções. No entanto, há também outras causas, representadas por procedimentos deliberados de esterilização, especial mente entre as mulheres do Nordeste brasileiro. Um desses procedimentos é a introdução de substâncias cáusticas para que a mulher não engravide mais, também chamado de “curativo“. Outro exemplo mais corriqueiro de esterilização é a laqueadura, uma anwração feita na trompa uterina.
A fimbria da trompa é a extremidade responsável por receber o óvulo no inicio de sua caminhada ao interior do útero. Quando essa parte é lesionada, formam-se aderências capazes de fechar a trompa. Como há líquidos em seu interior, que não conseguem mais sair pelo lado externo, a trompa incha e fica com a aparência de uma salsicha. De tempos em tempos, os líquidos acumulados podem até escapar pelo interior do útero e sair pela vagina, mas a essa altura a dilatação já causou estragos irreversíveis.
Tais estragos relacionam-se principalmente ao epitélio ciliar, parede in terna da trompa que forma um túnel para a passagem do espermatozoide. Esse órgão possui milhões de cílios que levam os gametas masculinos e femininos a se encontrarem e que, mais tarde, encarregam-se de levar o ovo até o útero. Em casos de obstrução das trompas, mesmo que a ligação seja reconstituída por cirurgia, eliminando-se as aderências, o epitélio não poderá ser restaurado. Com o inchaço provocado pelos líquidos, ele fica careca e os cílios não Crescem mais.
Há casos de aderências externas da trompa que não chegam a danificá-la ou fechá-la totalmente, mas ainda assim impedem a chegada do óvulo. Um pedaço da trompa, por exemplo, pode encostar e grudar no ovário ou em outro órgão, perdendo seus movimentos naturais e dificultando a captação do gameta feminino.
Se não há fimbrias para receber o óvulo, nem cílios para a fecundação, nem remédios que os façam crescer de novo, a trompa perde suas funções e pode necessitar ser removida. Nesses casos, quando o acúmulo de liquido dentro do tubo é grande, é importante retirá-lo para tratamento de FIV. É um cuidado que se toma ao fazer uma fertilização in vitro. Ao transferir o embrião para o útero, os líquidos da trompa lesionada podem contaminar o embrião e a fertilização se perde.